Autoria: Irene Hernández Velasco
"A fábrica de cretinos digitais".
Assim se intitula o último livro do neurocientista Michel Desmurget (Lyon, 1965), diretor de investigação no Instituto Nacional da Saúde de França, no qual conta com dados duros e de forma contundente como os dispositivos digitais estão a afetar gravemente, e para mal, o desenvolvimento neuronal de crianças e jovens.
"Simplesmente não há desculpa para o que estamos a fazer aos nossos filhos e como estamos a pôr em perigo o seu futuro e desenvolvimento", adverte em entrevista à BBC Mundo o especialista, que possui uma vasta obra científica e de divulgação e passou por reconhecidos centros de investigação como o Massachusetts Institute of Technology (MIT) ou a Universidade da Califórnia.
O seu livro tornou-se um gigantesco bestseller em França.
Os jovens de hoje são a primeira geração da história com um coeficiente intelectual (QI) mais baixo que a anterior?
Final de Quizás también te intereseSí. El coeficiente intelectual se mide con una prueba estándar. Sin embargo no es una prueba "congelada", a menudo se revisa.
Os meus pais não passaram pelos mesmos testes que eu, por exemplo, mas pode-se submeter um grupo de pessoas a uma versão antiga do teste.
E fazendo isso, os investigadores observaram em muitas partes do mundo que o coeficiente intelectual aumentava de geração em geração. A isto se chamou o 'efeito Flynn', em referência ao psicólogo norte-americano que descreveu este fenómeno.
Mas, recentemente, esta tendência começou a inverter-se em vários países.
É verdade que o coeficiente intelectual é fortemente afetado por fatores como o sistema de saúde, o sistema escolar, a nutrição...
Mas se olharmos para países onde os fatores socioeconómicos se mantiveram bastante estáveis durante décadas, o 'efeito Flynn' começou a diminuir.
Nesses países os "nativos digitais" são as primeiras crianças que têm um coeficiente intelectual mais baixo que os seus pais. É uma tendência que se documentou na Noruega, Dinamarca, Finlândia, Países Baixos, França, etc.
E o que está a provocar esta diminuição de coeficiente intelectual?
Infelizmente, ainda não é possível determinar o papel específico de cada factor, incluindo por exemplo a contaminação (especialmente a exposição precoce a pesticidas) ou a exposição aos ecrãs.
O que sabemos com segurança é que se o tempo que uma criança passa frente a um ecrã não é o único culpado, tem um efeito importante no coeficiente intelectual.
Vários estudos demonstraram que quando aumenta o uso da televisão ou dos videojogos, o coeficiente intelectual e o desenvolvimento cognitivo diminuem.
Os principais fundamentos da nossa inteligência são afectados: a linguagem, a concentração, a memória, a cultura (definida como um corpus de conhecimento que nos ajuda a organizar e compreender o mundo).
Em última instância, estes impactos conduzem a uma quebra significativa no rendimento académico.
E por que é que o uso dos dispositivos digitais provoca tudo isso?
As causas também estão claramente identificadas: diminuição na qualidade e quantidade de interações intrafamiliares, que são fundamentais para o desenvolvimento da linguagem e o desenvolvimento emocional; diminuição do tempo dedicado a outras actividades mais enriquecedoras (tarefas, música, arte, leitura, etc.); interrupção do sono, que se encurta quantitativamente e se degrada qualitativamente; sobreestimulação da atenção, o que provoca transtornos de concentração, aprendizagem e impulsividade; subestimulação intelectual, que impede que o cérebro estenda todo o seu potencial; e um estilo de vida sedentário excessivo que, para além do impacto no desenvolvimento corporal, influencia no amadurecimento cerebral.
Que danos provocam exatamente os ecrãs no sistema neurológico?
O cérebro não é um órgão 'estável'. As suas características 'finais' dependem da experiência.
O mundo em que vivemos, os desafios com que nos confrontamos, modificam tanto a estrutura como o seu funcionamento, e algumas regiões do cérebro especializam-se, algumas redes criam-se e fortalecem-se, outras perdem-se, umas tornam-se mais grossas e outras mais delgadas.
Observou-se que o tempo que se passa ante um ecrã por motivos recreativos atrasa a maturação anatómica e funcional do cérebro dentro de diversas redes cognitivas relacionadas com a linguagem e a atenção.
Há que enfatizar que nem todas as atividades alimentam a construção do cérebro com a mesma eficiência.
O que quer dizer?
As atividades relacionadas com a escola, o trabalho intelectual, a leitura, a música, a arte, os desportos, etc. têm um poder estruturador e nutritivo do cérebro muito maior que os ecrãs recreativos.
Mas nada dura para sempre. O potencial da plasticidade cerebral é extremo durante a infância e a adolescência. Depois, começa a desvanecer-se. Não desaparece, mas torna-se muito menos eficiente.
O cérebro pode comparar-se com uma plasticina. A princípio, é húmido e fácil de esculpir. Mas com o tempo torna-se mais seco e muito mais difícil de moldar.
O problema com os ecrãs recreativos é que alteram o desenvolvimento do cérebro dos nossos filhos e empobrecem-no.
Todos os ecrãs são igualmente daninhos?
Ninguém disse que a "revolução digital" seja má e deva ser detida. Eu mesmo passo boa parte do meu dia de trabalho com ferramentas digitais. E quando a minha filha ingressou na escola primária, comecei a ensinar-lhe como usar algum software de escritório e a procurar informação na internet.
Deveria ensinar-se aos estudantes as ferramentas e competências informáticas fundamentais? Claro. Ainda assim, pode a tecnologia digital ser uma ferramenta relevante no arsenal pedagógico dos docentes? Com certeza, se for parte de um projeto educativo estruturado e se o uso de um determinado software promover eficazmente a transmissão.
Todavia, quando se põe um ecrã nas mãos de uma criança ou de um adolescente, quase sempre prevalecem os usos recreativos mais empobrecedores.
Isto inclui, por ordem de importância: a televisão, que continua a ser o ecrã número um em todas as idades (filmes, séries, clips, etc.); depois os videojogos (principalmente de ação e violentos), e finalmente, por volta da adolescência, um frenesim de autoexposição inútil nas redes sociais.
Quanto tempo passam crianças e jovens diante dos ecrãs?
Em média, quase três horas por dia para as crianças de 2 anos, cerca de cinco horas para as de 8 anos e mais de sete horas para os adolescentes.
Isto significa que antes de chegar aos 18 anos, os nossos filhos terão passado o equivalente a 30 anos letivos frente a ecrãs recreativos ou, se preferir, 16 anos de trabalho a tempo inteiro!
É simplesmente uma loucura e uma irresponsabilidade.
Quanto tempo deveriam dedicar as crianças aos ecrãs recreativos?
Envolver as crianças é importante.
Necessitam que se lhes diga que os ecrãs recreativos danificam o cérebro, prejudicam o sono, interferem com a aquisição da linguagem, debilitam o rendimento académico, prejudicam a concentração, aumentam o risco de obesidade, etc.
Alguns estudos demonstraram que é mais fácil para crianças e adolescentes seguir as regras sobre os ecrãs quando elas se lhes explicam e se discute com eles a sua razão de ser.
A partir daí, a ideia geral é simples: para qualquer idade, o mínimo é o melhor.
Para além desta regra geral, podem-se proporcionar normas mais específicas segundo a idade da criança. Antes dos 6 anos, o ideal é não ter ecrãs (o que não significa que de vez em quando os pais não possam ver uns desenhos animados com os filhos).
Quanto mais cedo estiverem expostos, maiores serão os impactos negativos e o risco de um consumo excessivo posterior.
A partir dos 6 anos, se os conteúdos forem adaptados e se conservar o sono, pode-se chegar até meia hora por dia, inclusive uma hora, sem que haja uma influência negativa apreciável.
Outras regras relevantes: nada de ecrãs de manhã antes de ir para a escola, nada à noite antes de ir para a cama ou quando estejam com outras pessoas. E, sobretudo, nada de ecrãs no quarto.
Mas é difícil dizer aos nossos filhos que os ecrãs são um problema quando nós, como pais, estamos constantemente conectados aos nossos smartphones ou a consolas de jogos.
Por que é que muitos pais não estão conscientes dos perigos dos ecrãs?
Porque a informação que se dá aos pais é parcial e enviesada. Os principais meios de comunicação estão repletos de afirmações infundadas, propaganda enganosa e informação inexacta. La discrepância entre os conteúdos dos media e a realidade científica é amiúde inquietante, para não dizer exasperante.
Não quero dizer que os media sejam desonestos: separar o trigo do joio não é fácil, inclusive para jornalistas honestos e conscienciosos.
Mas não é de estranhar. A indústria digital gera milhares de milhões de dólares de lucros anuais. E, obviamente, crianças e adolescentes são um recurso muito lucrativo.
E para as empresas que valem milhões de milhões de dólares, é fácil encontrar cientistas complacentes, lobistas dedicados e comerciantes entusiastas das dúvidas.
Permita-me dar-lhe um exemplo.
Recentemente um psicólogo, supostamente perito em videojogos, explicou em vários meios que estes jogos tinham efeitos positivos, que não deviam ser demonizados, que não jogar poderia inclusivamente ser um handicap para o futuro de uma criança, que os jogos mais violentos poderiam ter ações terapêuticas e ser capazes de apagar a ira nos jogadores, etc.
O problema é que nenhum dos jornalistas que entrevistaram a este "perito" mencionou que trabalhava para a indústria dos videojogos. E este é só um exemplo entre os muitos que se descrevem no meu livro.
Isto não é algo novo: sucedeu no passado com o tabaco, o aquecimento global, os pesticidas, o açúcar, etc.
Mas creio que há espaço para a esperança. Com o tempo, a realidade torna-se cada vez mais difícil de negar.
Há estudos que afirmam por exemplo que os videojogos ajudam a obter melhores resultados académicos…
Permita-me dizer-lho com franqueza: isso é pura loucura.
Essa ideia é uma verdadeira obra-prima da propaganda. Baseia-se principalmente nuns poucos estudos isolados com dados podres, que se publicam em revistas secundárias e que amiúde se contradizem.
Numa interessante investigação experimental, entregaram-se consolas de jogos a crianças que iam bem na escola. Após quatro meses, descobriu-se que passavam mais tempo a jogar e menos tempo fazendo os deveres. Os seus resultados caíram cerca de 5% (o que é muitíssimo em apenas quatro meses!).
Noutro estudo, as crianças tiveram de aprender uma lista de palavras. Uma hora depois, a alguns permitiu-se-lhes jogar um videojogo de corridas de carros. Duas horas depois foram para a cama.
Na manhã seguinte, as crianças que não jogaram recordavam-se de cerca de 80% da lição, face aos apenas 50% de que se lembravam os jogadores.
Os autores observaram que jogar interferia com o sono e a memorização.
Como crê que serão os membros desta geração digital quando se converterem em adultos?
Oiço muitas vezes dizer que os nativos digitais sabem "de maneira diferente". A ideia é que ainda que mostrem déficits linguísticos, de atenção e de conhecimento, são muito bons em "outras coisas".
A questão radica na definição dessas "outras coisas".
Vários estudos indicam que, em contraste com as crenças comuns, não são muito bons com os computadores.
Inclusivamente, um relatório da União Europeia explica que a sua baixa competência digital dificulta a adoção de tecnologias educativas nas escolas.
Outros estudos também indicam que também não são muito eficientes a processar e compreender a grande quantidade de informação disponível na internet.
Então, o que lhes resta? Obviamente, são bons para usar aplicações digitais básicas, comprar produtos online, descarregar música e filmes, etc.
Para mim, estas crianças parecem-se com as descritas por Aldous Huxley na sua famosa novela distópica Brave New World ("Admirável mundo novo", em português): pasmados pelo entretenimento tonto, privados de linguagem, incapazes de refletir sobre o mundo, mas felizes com a sua sorte.
Alguns países estão a começar a legislar contra o uso de ecrãs?
Sim, especialmente na Ásia.
Taiwan, por exemplo, considera que o uso excessivo de ecrãs é uma forma de abuso infantil aprovou uma lei que estabelece fortes multas para os pais que exponham crianças menores de 24 meses a qualquer aplicação digital e que não limitem o tempo de ecrãs dos miúdos entre 2 e 18 anos.
Na China, as autoridades tomaram medidas drásticas para regular o consumo de videojogos por parte de menores: as crianças e adolescentes já não podem jogar de noite (entre as 22 horas e as 8 horas) nem exceder os 90 minutos de exposição diária durante a semana (180 minutos aos fins de semana e nas férias escolares).
Crê que é bom que haja leis que protejam as crianças dos ecrãs?
Não me agradam as proibições e não quero que ninguém me diga como tenho de criar a minha filha.
Todavia, está claro que as opções educativas só se podem exercer livremente quando a informação que se dá aos pais é sincera e exaustiva.
Creio que uma campanha justa de informação sobre o impacto dos ecrãs no desenvolvimento com padrões claros seria um bom começo: sem ecrãs para crianças de até 6 anos e depois, não mais de 30-60 minutos por dia.
Se esta orgia digital, como a define, não se detiver, o que podemos esperar?
Um aumento das desigualdades sociais e uma progressiva divisão da nossa sociedade entre uma minoria de crianças preservada desta "orgia digital" -os chamados Alphas da novela de Huxley-, que possuirão através da cultura e da linguagem todas as ferramentas necessárias para pensar e refletir sobre o mundo, e uma maioria de crianças com ferramentas cognitivas e culturais limitadas - os chamados Gammas da novela de Huxley-, incapazes de compreender o mundo e de atuar como cidadãos ilustrados.
Alpha frequentará escolas privadas, caras, com professores humanos "verdadeiros".
Os Gamma irão para escolas públicas virtuais com apoio humano limitado, onde serão alimentados com uma pseudolinguagem parecida com o "Newspeak" de Orwell e ensinar-lhes-ão as competências básicas dos técnicos de nível médio ou baixo (as projeções económicas dizem que este tipo de trabalhos estarão sobrerrepresentados na força laboral do futuro).
Um mundo triste em que, como dizia o sociólogo Neil Postman, se divertirão até à morte. Um mundo em que, através do acesso constante e debilitante ao entretenimento, aprenderão a amar a sua servidão. Perdão por não ser mais positivo.
Talvez (e assim espero) esteja equivocado. Simplesmente não há desculpa para o que estamos a fazer aos nossos filhos e como estamos a pôr em perigo o seu futuro e desenvolvimento.
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Texto original em espanhol, publicado a 20/10/2020, em:
https://www.bbc.com/mundo/noticias-54554333?fbclid=IwAR04U5TFNhHjxrqqU1AvwVi1X_MUDsIhNYvsDc3247b59HyMkn53-YoHHBQ
Acedido em 02/11/2020
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